Maior campeão do futebol capixaba nos últimos 60 anos quase perde o estádio em leilão

O clube que coleciona o maior número de títulos no futebol capixaba nas últimas seis décadas – desde que foi fundado -, acumula também, nas últimas duas décadas, uma sequência de problemas que não estavam no planejamento de ninguém que pensou a união que resultou no seu surgimento. O mais recente deles foi o risco, iminente, de perder seu maior patrimônio, a sua “casa”.

Nos últimos dias de março, a Desportiva Ferroviária conseguiu salvar de um leilão, como se diz no jargão futebolístico, no último minuto da prorrogação, o seu ativo mais precioso neste momento, o Estádio Engenheiro Araripe, em Jardim América, Cariacica. Com a Desportiva Capixaba S.A. sob liquidação judicial e, portanto, com todos os bens colocados pela Justiça à disposição do liquidante para fins de levantamentos de ativos e passivos e, assim, completar o processo para que possa seguir seu destino, a Desportiva Ferroviária descobriu que, mesmo assim, o seu estádio estava previsto para ser vendido em um leilão extrajudicial – e, portanto, ilegal -, à margem do processo de liquidação. A notícia ficou encoberta até que a Desportiva Ferroviária fez um post em suas redes sociais, no dia 1º de maio, alertando seus torcedores sobre os fatos mais recentes relacionados à liquidação judicial da S.A. e revelou o risco de perder o estádio. Por outro lado, a nota rendeu também uma reprimenda do Juízo da 2ª Vara Cível, Órfãos e Sucessões, da Comarca de Cariacica, provocado pelo outro sócio da S.A., a Oliveira – Empreendimentos e Participações S.A (Grupo Villa-Forte).

Este é apenas mais um capítulo no imbróglio que se estabeleceu, desde 1999, no tradicional clube formado em 1963 sob a tutela da, então, estatal Companhia Vale do Rio Doce, como resultado da fusão de seis clubes: Associação Atlética Vale (fundada em 1943), Ferroviário Sport Club (1945), Esporte Clube Guarany (1951), Associação Atlética Cauê (1957), Associação Esportiva Vale do Rio Doce (Valério, de 1959) e Cruzeiro Esporte Clube (clube amador da época).

Em vias de completar 60 anos no dia 17 de junho, a Desportiva é o maior ganhador de títulos do futebol capixaba desde que foi fundada: 18 conquistas na primeira divisão, seguida pelo Rio Branco com 14 e Serra com seis conquistas.

O FATO E A HISTÓRIA

O fato motivador da mais recente decisão judicial (sentença 156) nos autos do processo 0005590-06.2012.8.08.0012 foi a descoberta, pela Desportiva Ferroviária, que uma empresa de São Paulo, a Milan Leilões, havia anunciado para 30 de março de 2023, às 15 horas, a realização do leilão extrajudicial do estádio Engenheiro Araripe, apresentado pela Villa-Forte como garantia de uma negociação de dívida do grupo empresarial com a Fazenda Pública Nacional.

Por conta da determinação judicial na sentença 156, de 3 de maio de 2023, proibindo a Desportiva Ferroviária “de qualquer ação que não represente exatamente o que acontece nos autos do processo respectivo, sob pena de responsabilização pessoal da parte e das pessoas físicas que a representem, sem prejuízo de responsabilização criminal caso cabível”, os dirigentes do clube silenciaram sobre o assunto.

A publicação do “InformaTiva 002” no perfil do instagram da Desportiva Ferroviária, relatando a tentativa de leiloar o estádio, à margem do processo judicial, foi feita no dia 1º de maio e alertou os torcedores, gerando dezenas de manifestações. Provocada pelo Grupo Villa-Forte, a Justiça, então, se manifestou nos termos da sentença 156. Na publicação, o clube relata os problemas que passou a viver a partir da criação da S.A. em 1999 e como o outro sócio não incorporou o patrimônio contratatado, “o que prejudicou fortemente os objetivos da nova sociedade, principalmente os desportivos”.

Só para registrar, quando foi feito o contrato que resultou na Desportiva S.A., em 1999, a Desportiva Ferroviária adquiriu 49% das cotas incorporando à sociedade o estádio Engenheiro Araripe. Para o outro sócio, também conhecido como “Grupo Frannel”, seriam destinadas 51% das ações, a serem subscritas em dinheiro, em moeda da época, R$ 1.040.910,00 – com entrada de 10% (R$ 104.091,00) e os restantes R$ 936.819,00 em 30 parcelas mensais, iguais e sucessivas de R$ 30 mil, além da construção, em 18 meses, de um posto de gasolina bandeira “Frannel”, no valor de R$ 236.819,00). De tudo isso, o “sócio” só pagou os 10%.

De acordo com a nota, a sociedade “trouxe consequências negativas, já que o patrimônio do clube foi exposto em ações judiciais nas quais – somente – o Grupo Villa-Forte & Oliveira constava no polo passivo. Mesmo tendo integralizado apenas 10% do que deveria, o Grupo Villa-Forte & Oliveira nomeou o estádio como garantia em diversas penhoras por dívidas próprias daquele grupo”.

E, então, reporta-se ao leilão de março: “No final do mês de março, fomos surpreendidos com a notícia de um leilão do Estádio Engenheiro Araripe por uma empresa privada de São Paulo. Tal leilão foi contratado diretamente pelo representante do Grupo Villa-Forte & Oliveira, sem qualquer determinação judicial, em um ato unilateral inaceitável e que demandou esforço da diretoria grená para que não ocorresse”.

Na nota, a Desportiva Ferroviária ressalta que “o Engenheiro Araripe é um patrimônio arquitetônico, cultural e desportivo do município de Cariacica e de todo o Espírito Santo, sendo um pilar importante para a continuidade da Desportiva Ferroviária enquanto instituição social e desportiva”.

E acrescenta: “A possível realização de um leilão coloca em xeque, também, o funcionamento da EMEF Eliezer Batista, escola que está estabelecida nas dependências do estádio e cujo registro de matrícula é o mesmo do Engenheiro Araripe”.

Como o futebol da Desportiva Ferroviária continua em atividade, a nota salienta que “o leilão prejudicaria fortemente também a criação da Sociedade Anônima de Futebol (SAF), projeto anunciado recentemente pelo clube. Sobre este último ponto, os representantes da Meden Consultoria já foram formalmente comunicados e se mostraram preocupados com toda a situação”.

DISSOLUÇÃO

A história, mal construída, da Desportiva Capixaba S.A., com 51% das ações em mãos do Grupo Villa-Forte e 49% da Desportiva Ferroviária, durou, efetivamente, 15 anos, sendo dissolvida a sociedade em 2014 por decisão judicial, depois que o grupo empresarial não fez as incorporações necessárias, conforme os termos do contrato social.

Na sentença de dissolução, de 01 de dezembro de 2014, o juiz reafirma o trânsito em julgado da decisão que considerou que a Oliveira Empreendimentos e Participações subscreveu apenas 10% do capital total sob sua responsabilidade, conforme acórdão de decisão da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, publicado no Diário da Justiça de 20.04.2010.

Apesar de já terem transcorridos nove anos, a dissolução judicial da sociedade ficou emperrada durante todo esse tempo, mas as esperanças se renovaram com a designação de um novo liquidante judicial, que, pela decisão judicial, deverá ficar legalmente de posse de todos os bens da sociedade liquidada – a Desportiva Capixaba S. A. – enquanto durar os trabalhos de liquidação, neles incluído o estádio Engenheiro Araripe, integralizado pela Desportiva Ferroviária.

Os passivos a serem cobertos na liquidação não devem ultrapassar os R$ 4 milhões, conforme apurou a reportagem, enquanto o estádio está avaliado em R$ 150 milhões. O risco, admitem, é de haver o leilão. Mas, na própria sentença, o Juizo volta a determinar a colaboração das partes com o liquidante.

“O processo agora entra em sua fase mais importante que é a, malgrado da péssima comparação, tentativa de quitar todas as dívidas para somente  então se verificar a possibilidade de que seja reerguido o clube de tantas paixões”, diz o despacho.

O plano de trabalho prevê a liquidação judicial em 12 meses, mas isso desde que o processo foi determinado, em 2014, se arrastando pelos últimos nove anos.

INDENIZAÇÃO MILIONÁRIA

Mas não é somente o estádio de Jardim América que está em questão. Entra no patrimônio também um ativo, por enquanto, virtual, mas que pode se transformar numa fortuna na conta do clube: R$ 131,5 milhões, valor definido pelo perito judicial Maurício Duque na 3ª Vara Cível de Vitória.

De onde vem esse dinheiro? Para entender, vamos ter que voltar no tempo. Em 2004,  a Confederação Brasileira de Futebol precisava anunciar a tabela do Campeonato Brasileiro da Série C (ainda não havia a Série D) e o Campeonato Capixaba estava em curso. Nestes casos, a CBF orientou que as Federações indicassem seus representantes para preencher a tabela.

Foi aí que surgiu o problema: a Federação de Futebol do Espírito Santo indicou para representar o Estado a Desportiva e o Rio Branco, os dois clubes mais tradicionais e de maior torcida. A Desportiva (no caso, Desportiva Capixaba S.A.) acreditou no convite e montou o time para o Brasileiro, mas o problema foi que, no final, Serra e Estrela foram os dois primeiros colocados do campeonato e reivindicaram as duas vagas.

O Tribunal de Justiça Desportiva deu ganho de causa aos recorrentes por 4 a 3. A ironia disso tudo é que o quarto voto foi dado por um juiz que hoje é dirigente da Desportiva: Carlinhos Farias. Desportiva e Rio Branco recorreram ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que manteve a decisão do tribunal regional. Era uma quinta-feira e o campeonato começaria no domingo, o que levou a CBF a suspender a rodada com os representantes capixabas.

A Desportiva Capixaba entrou com uma ação indenizatória na 3ª Vara Cível de Vitória contra a CBF calculando prejuízos e lucros cessantes em R$ 332 milhões, que foi o valor atribuído à causa, estimando uma possível ascensão até a Série A, que era o plano do clube. A Justiça deu ganho de causa à Desportiva, mas determinou novos cálculos por um perito contábil, que calculou o dano em R$ 131,5 milhões.

O clube capixaba tenta por todos os meios fazer a CBF pagar a sentença judicial. Quando isso acontecer, novo imbróglio surgirá: teoricamente, o dinheiro seria da Desportiva Capixaba, formada com 51% de ações do Grupo Villa-Fortes e 49% da Desportiva Ferroviária. Ocorre que uma sentença judicial do mesmo ano de 2004 reconheceu que o Villa-Forte encorpou apenas 10% do que deveria, enquanto a Desportiva Ferroviária compareceu com 49% através de seu patrimônio.

Como a sociedade não teve as incorporações devidas pelo grupo empresarial, com a dissolução do clube-empresa em 2014 a Desportiva Ferroviária entende que tem direito a 90% desse dinheiro que virá da ação contra a CBF, ou seja: R$ 118,35 milhões.

A reportagem não conseguiu informações de como anda o processo relacionado à dívida da CBF com o clube capixaba, mas a sentença está com trânsito em julgado no valor de R$ 131,5 milhões calculado pelo perito contábil. Os autos estão em segredo de justiça. Enquanto isso, o futebol capixaba míngua na quarta divisão do Campeonato Brasileiro. (Da Redação)